Povos misteriosos do passado no terreno Americano.
Determinada origem genética de 80% das populações nativas das Américas
Ferramentas fabricadas pela cultura Clóvis SARAH ANZICK Eles não foram os primeiros humanos a colonizar o continente americano, pois existem vestígios de populações que os antecederam. Mas o povo Clóvis (cuja cultura foi descoberta nos anos 1930 em Clóvis, Novo México) foi o primeiro representante da nossa espécie a ter ali conhecido uma grande expansão. E existe um debate de longa data acerca da relação entre os povos americanos nativos actuais e o povo Clóvis – e também acerca da origem do próprio povo Clóvis. A ideia mais geralmente aceite foi sempre que este povo – ou os seus antepassados – teria chegado da Ásia pela chamada ponte terrestre de Bering, que durante a última glaciação unia a Sibéria ao Alasca. Mas mais recentemente, há quem tenha vindo a especular que o povo Clóvis poderia ser derivado de populações que, de alguma maneira, teriam atravessado naquela altura o Atlântico, aproveitando o avanço do gelo Árctico, vindas da Europa ocidental. Agora, os resultados de Eske Willerslev, da Universidade de Copenhaga (Dinamarca), e uma equipa internacional de cientistas, publicados na revista Nature com data de quinta-feira, contribuem para clarificar substancialmente a situação, descartando em particular esta segunda hipótese de uma origem europeia. O povo Clóvis viveu na América do Norte há uns 13 mil anos, caçando mamutes, mastodontes e bisontes com as suas características pontas de lança talhadas na pedra. E desapareceu, ninguém sabe porquê, ao fim de quatro séculos. Actualmente, apenas se conhece um único esqueleto humano enterrado juntamente com ferramentas da cultura Clóvis – que o colocam portanto no seio dessa cultura. Trata-se dos restos mortais – dos mais antigos jamais descobertos no Novo Mundo – de uma criança com um a dois anos de idade, enterrada há uns 12.600 anos junto de mais de uma centena de objectos fabricados por aquele antigo povo. E foi a análise da totalidade do genoma dessa criança que permitiu agora determinar a origem genética da esmagadora maioria dos ameríndios actuais. A criança, que se sabe ter sido um rapaz e cujas ossadas são conhecidas dos especialistas como Anzick-1, foi descoberta em 1968 nas terras do casal Anzick, no estado norte-americano do Montana, perto de onde está hoje instalada a reserva da tribo índia Crow. Sarah Anzick, filha do casal e oficialmente proprietária do achado, faz aliás parte da equipa e participou na sequenciação do genoma, como ela própria referiu numa teleconferência de imprensa organizada em directo pela Nature a partir daquela reserva índia dos EUA. Segundo Willerslev, citado em comunicado da Universidade de Copenhaga, a análise do ADN permite concluir que uns 80% de todos os nativos actuais das Américas são descendentes directos do grupo humano ao qual pertencia aquela criança. E os 20% restantes são geneticamente mais próximos desse grupo do que de qualquer outro povo na Terra. “É quase como encontrar o ‘elo perdido’ que conduz ao antepassado comum de todos os americanos nativos”, salienta o investigador. Willerslev e colegas já tinham também mostrado, num estudo anterior , que o povo Clóvis não tinha sido o primeiro a chegar às Américas, mas que fora precedido por uma outra população, milhares de anos antes. E à luz dos novos resultados, diz Willerslev, citado pela revista New Scientist , "o cenário mais provável é que tenha havido uma única migração humana para o coração da América do Norte, há uns 15 mil anos, que a seguir terá dado origem ao povo Clóvis e aos seus descendentes, que incluem os americanos nativos actuais". Em particular, isso significa que o povo Clóvis já era nativo da América. A equipa descobriu algo mais: que esses antepassados mais remotos dos Clóvis e dos actuais povos nativos da América – aqueles que vieram da Ásia pela Sibéria – dividiram-se a seguir em dois grupos geneticamente distintos. Um deles deu origem aos americanos nativos que vivem actualmente no Canadá, enquanto o outro grupo – ao qual pertencia a criança Clóvis de Anzick – é o antepassado de praticamente todas as populações nativas actuais da América do Sul e do México. Contudo, ainda não há informação que permita saber onde é que os Estados Unidos se encaixam nesta história. “Para isso, precisamos de sequenciar mais genomas” de populações nativas dos EUA, explicou Willerslev aos jornalistas. Mas então, quem eram esses antepassados vindos da Ásia? “Não sabemos ainda”, responde Willerslev no já referido comunicado. “Mas os nossos resultados eliminam todas as outras teorias sobre as origens das primeiras populações da América.” Resumindo, o cientista explica que a população ancestral do povo Clóvis era originária da Ásia do Leste; e que, ao legado genético desses antepassados, vieram juntar-se, algures pelo caminho, genes de povos da Sibéria. “Pudemos determinar que o rapaz Clóvis de Anzick partilha cerca de um terço dos seus genes com um rapaz que viveu há 24 mil anos nas margens do lago Baikal, na Sibéria, que tínhamos previamente analisado”, frisa. A pedido das tribos nativas do Montana – que foram consultadas ao longo de todo este trabalho –, os restos mortais do rapaz de Anzick deverão ser novamente sepultados “no fim da Primavera, início do Verão”, disse o co-autor Shane Doyle, que pertence à tribo Crow. “Queremos levá-lo de volta e enterrá-lo no sítio onde foi encontrado.”
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